Quando criança, uma vez cortei as asas de uma borboleta que capturei no jardim. Minha intenção, enquanto naturalista amador, era a de observar qual seria seu comportamento se não pudesse voar. Meu pai pedagogicamente comentou que aquilo era uma sacanagem com a borboleta. Subitamente percebi, já naquela tenra idade, os horrores que podemos causar em nome da ciência e do progresso.
Conheço algumas mulheres que abortaram e não tenho dúvida de que a vida delas teria sido drasticamente alterada se não tivessem recorrido ao procedimento. No livro Freakonomis, estudando o histórico da criminalidade nos Estados Unidos, Steven Levitt chega à conclusão que a redução da criminalidade na América dos anos 90 se deveu mais à legalização do aborto nos anos 70 do que a qualquer outra política de desarmamento ou de maior policiamento. Segundo Levitt, as mulheres que decidiram abortar, a maioria pobre e com baixa escolaridade, sabem na maioria das vezes se têm ou não condições de criar e educar uma criança. O próprio Steven Levitt no entanto diz que seu estudo não tem nenhuma base moral, e que mesmo considerando-se hipoteticamente que cada feto tem 1% do valor de uma vida humana, usar o aborto como método contra a criminalidade seria terrivelmente ineficiente.
O tema do aborto voltou à pauta durante a visita do Papa Bento XVI à América Latina, e tem estado na agenda do governo Lula, em novelas e na boca do povo.
Eu já defendi aqui o direito das mulheres escolherem o que fazer com o próprio corpo. Acreditava então que esta era a idéia progressista, que esse negócio de alma é crendice, que pela ciência só pode haver vida se existe pelo menos um cérebro formado na gestação, e que um aborto até a formação do cérebro é plenamente aceitável. Acreditava que privar as mulheres do direito ao aborto seria negar-lhes a liberdade que os machos usufruem desde sempre. Estas aliás são idéias divulgadas na maioria dos países desenvolvidos, inclusive aqui na Holanda onde a mulherada aborta como bem entende.
As mulheres lutaram devidamente pela própria liberdade sexual, e com toda razão. Mas liberdade é diferente de direito à irresponsabilidade. Liberdade dá direito à escolhas, mas não dá o direito de esquivar-se às consequências de suas escolhas.
Hoje em dia seria aceitável o fato de garotas de onze anos serem pegas nos banheiros de escolas públicas praticando sexo oral com seus colegas em nome da liberdade sexual conquistada nos anos 60? Falem com qualquer professor da rede pública e verão o quanto isso está acontecendo.
Para fazer escolhas responsáveis os jovens precisam de educação familiar, educação sexual, acesso a métodos contraceptivos. Nisto deveria estar o foco do governo.
Bem sei que centenas de garotas, a maioria pobre, arrisca a vida em clínicas de aborto clandestinas no Brasil (e no resto do planeta). Pagam o preço da própria irresponsabilidade, fruto da educação que não tiveram. Mas hoje, me parece que resolver este problema legalizando o aborto equivale a matar a vaca para curá-la de carrapatos.
O fato é que hoje ciência e religião não podem afirmar com certeza quando a vida começa. E na dúvida, não ultrapasse. Mesmo quem não acredita em Deus, acredita pelo menos que a humanidade deve evoluir para alguma coisa boa, e que cada vida desperdiçada é um passo atrás nessa caminhada.
Mas a história que me fez mudar de idéia em relação ao aborto está descrita a seguir.
É a história de Cacilda de Jesus Ferreira, 36 anos, agricultora em Patrocínio Paulista. No ano passado, Cacilda deu a luz à Marcela. Brás Henrique contou sua história no Estadão:
"Marcela de Jesus Ferreira completou ontem oito dias de vida. Desde o seu nascimento (2,5 quilos e 47 centímetros) está num dos quartos da Santa Casa de Patrocínio Paulista, cidade de cerca de 15 mil habitantes na região de Ribeirão Preto. Ao seu lado, a mãe, Cacilda, de 36 anos, reza pela sobrevida da pequena. Os oito dias de vida de Marcela já contrariam vários prognósticos da Medicina. Ela tem apenas uma pequena parte do encéfalo (cérebro), o que adia a sua provável morte. Desde o diagnóstico do quadro de anencefalia (ausência de cérebro), no quarto mês de gestação, Cacilda jamais cogitou a hipótese de interrupção da gravidez (os especialistas evitam a palavra aborto). 'Sofrer, a gente sofre, mas ela não pertence a mim, mas a Deus, e eu cuido dela aqui', diz a mãe, católica. 'Enquanto isso, cada segundo da vida dela é precioso pra mim.'"
Reinaldo Azevedo chamou Cacilda de de exemplo moral. Diz ele: “É claro que não está dito, nem sugerido, que mulheres que, em situação semelhante, optaram pelo aborto são imorais. Eu sempre sou muito duro no trato das questões políticas, mas tomo extremo cuidado para tratar das dores alheias. Faz parte do zelo que tenho pelo indivíduo. A dor de cada um, meus caros, é sempre indivisível.O que elogiei em Cacilda, o que me comoveu mesmo, é a defesa incondicional que ele faz da vida - mesmo uma vida que insiste em desafiar, vamos ver até quando, tudo o que nos parece razoável e aceitável, como é o caso da de sua filha, Marcela. Quando Cacilda diz: "Sofrer, a gente sofre, mas ela não pertence a mim, mas a Deus, e eu cuido dela aqui. Enquanto isso, cada segundo da vida dela é precioso pra mim", canta um hino à generosidade, à prudência, ao amor incondicional.Exalto o princípio dessa mulher, que nos põe para pensar. Acatou o sofrimento certo quando foi advertida da anencefalia no quarto mês de gravidez. Sofrimento que não lhe era imposto por ninguém. Foi um ato de consciência. Não era escrava da vontade de terceiros. E se negou a sê-lo mesmo da palavra que se quer sempre última: a da ciência - insistirei o quanto for necessário: o discurso científico não é uma ética. Mais do que isso: Cacilda, sem dominar certamente os códigos dos discursos morais, nos diz que atenta contra a humanidade estabelecer quais são as precondições que fazem uma vida ser, afinal de contas, uma vida.Não tarda, e logo aparecerá alguém para, "em nome da razão", determinar quem merece ou não continuar vivo. É a tentação subjacente quando se debatem temas como eutanásia e ortotanásia. Eu os considero tentações malignas. E porque o são, é claro que os inocentes são os primeiros a cair nas armadilhas. Cacilda está protegida delas pela sua fé, que não mata, não deixa morrer nem justifica a morte. Não se deixou escravizar nem mesmo pelo medo de sofrer. Cacilda nos protege do terror. Acredito nisso”
Eu também.