Thursday, April 22, 2010

Homo vegetarianus


No início da semana, o programa Login da TV Cultura inseriu em sua programação um debate sobre vegetarianismo com a participação da nutricionista Licínia de Campos do SIC (Serviço de Informação da Carne) e George Guimarães, da Sociedade Vegana.
Descontando-se a inépcia dos mediadores que não conseguiram organizar um debate civilizado, e o péssimo hábito do Sr. Guimarães de não deixar outras pessoas falarem, foi possível pinçar alguns seus argumentos que comprovariam a suposta superioridade de sua dieta.
Em primeiro lugar é preciso distinguir as várias nuances de vegetarianismo. Há os que comem peixe e frutos do mar, há os que comem ovos e leite, há os que não admitem o uso de nenhum tipo de alimento de origem animal e há ainda aqueles que só aceitam o que a natureza oferece de bom grado, não o que é tomado dela pelo homem. Lisa Simpson encontrou uma vez um ativista que dizia ser um Vegan Nível 5, que não comia nada que fizesse sombra (I don’t eat anything that casts a shadow). Há aí também uma escalada ideológica implícita até para os próprios vegetarianos que vai dos menos aos mais perfeitos.
O primeiro argumento do vegetarianismo é que comer carne não é natural para o homem. Eu permito-me discordar. Durante o programa, notei que nas inúmeras ocasiões em que não conseguiu manter a boca fechada, mesmo George mostrou em sua arcada dois pares de dentes conhecidos como caninos, especialmente desenhados para estraçalhar carne. O fato de que nós como espécie, George inclusive, tenhamos saído de cima das árvores para evoluir, aumentar nosso cérebro e conquistar o mundo, deriva diretamente, como prova o antropólogo Richard Wrangham de Harvard, do consumo de carne e posteriormente do domínio do fogo e de técnicas de cozimento.
George também nos chama de carniceiros, comparando-nos a hienas e urubus, já que não comemos a carne quente logo depois do abate. Talvez George tenha experimentado carniça, e aí esteja a razão do seu trauma, mas eu sinceramente prefiro carne que tenha passado pelo abate, resfriamento e processamento em frigoríficos habilitados, já que é esta a garantia de que não haverá contaminação microbiológica na carne que estou comendo.
George também sugere que agora que já estamos evoluídos, não precisaríamos mais da carne, como se de repente pudesse surgir uma nova espécie, o homo vegetarianus. Acho que ele precisa de um pouco de perspectiva. Mais de 2 milhões de anos (comendo carne) se passaram para a espécie humana evoluir até aqui. Querer transformar nossa fisiologia no espaço de uma ou duas gerações me parece um pouco precipitado.
O outro grande argumento de George, e o mais apelativo, é o da crueldade. Comer carne é cruel. Meat is murder. O Homo vegetarianus tem essa pretensão de ser um indivíduo moralmente superior ao resto dos mortais. Eu gosto de assistir a National Geographic. Uma vez assisti uma caçada de leões. Um bando de leoas derrubou uma inocente zebra e enquanto uma segurava sua garganta as outras começaram a devorar suas tripas e membros enquanto a pobre zebra ainda berrava. Isso foi cruel. Acho engraçado esse pensamento de que animais na natureza têm uma vida idílica quando não estão sujeitos a crueldade humana.
Conheço várias fazendas e frigoríficos. Posso afirmar sem sombra de dúvida que é do maior interesse de pecuaristas e frigoríficos que os animais tenham no campo a melhor vida possível e sejam abatidos da forma menos estressante possível. Talvez George não acredite que essa gente seja tão boazinha, então é preciso que ele saiba que além dos motivos humanitários há também razões econômicas, já que o animal rende mais e a maturação da carne é melhor.
Eu vou dizer o que acho cruel. Acho cruel por exemplo que crianças, especialmente as mais carentes não possam comer carne e tenham anemia. Uma pesquisa da Dr. Ana Maria Bridi da Universidade Estadual de Londrina mostrou que o consumo de carne está ligado ao desenvolvimento cognitivo de crianças. Carne é fonte de proteínas de alto valor biológico, ômegas 3 e 6, vitaminas A, E e B12, ferro e zinco.
O Homo vegetarianus diz que tudo isso pode ser conseguido por outras fontes. Ah sim, isso é natural, tomar vitaminas e suplementos sintéticos todos os dias. Dizem que há tri-atletas vegetarianos e etc e tal.. Sou capaz de rasgar meu diploma se for na casa de um deles e não encontrar por lá nenhum suplemento ou nenhum desses potes coloridos tipo MegaMass2000 que se encontram em lojas de esporte, e talvez uma injeção ou outra de otras cositas más.
Nos países em desenvolvimento, a cada aumento de renda percebido há um aumento proporcional no consumo de carne. As famílias percebem a importância colocar carne no prato dos filhos.
De fato eu não conheço nenhum vegetariano pobre. Há talvez alguns por fanatismo religioso em certos cantos da Índia, mas pela aparência eles não são exatamente do tipo que “vende saúde”. Pode ser fácil para um Paul McCartney advogar o vegetarianismo do alto de uma fortuna de alguns milhões de dólares, ou para quem pode comer granola e iogurte natural no café da manhã e sushi no almoço. Mas para quem tem fome, carne é ao mesmo tempo necessária e desejada.
Aí vem a carta do meio-ambiente. Claro, a pecuária é devastadora. Vacas poluem mais que carros. Os argumentos vêm de um relatório da FAO de 2007, intitulado The Livestock Long Shadow, ou a Grande Sombra da Pecuária, sobre as emissões de GEE. No início de 2010, depois do prof. Frank Milthoener da UC Davis contestar os dados em um congresso científico, a própria FAO admitiu que a metodologia usada foi falha, e que iria rever o relatório. George também não sabe que os pastos onde as vacas estão absorvem mais carbono do que o que elas emitem.
Além disso fala-se de boi como se ele produzisse só carne, e não uma vasta gama de produtos que vão do couro até biodiesel, medicamentos e produtos de limpeza.
O outro argumento é que a pecuária usa muito mais espaço comparada à agricultura. Bem, eu sou agrônomo e sei que há terras boas para café, outras boas para banana, e outras boas para ... pasto. E nenhuma planta no mundo produz mais massa verde por unidade de área do que gramíneas tropicais. Infelizmente não podemos aproveitar esse potencial, ruminantes podem. E estamos evoluindo no modo de produção. Só no Brasil, entre 1975 e 2007, a produção de carne cresceu 227% para um aumento de área de pastagens de apenas 4%.
Vamos então imaginar que a humanidade passasse a se alimentar de frutas e legumes que a natureza nos oferece. Em 2050 seremos mais de 9 bilhões de pessoas no planeta. Para alimentar essa gente toda com frutas e legumes seria preciso derrubar todas as florestas existentes no planeta. É uma bizarra maneira de defender a natureza.
Não tenho nada contra quem queira ser vegetariano. Pelo contrário, acho que vai sobrar mais carne para mim.
Mas contesto veementemente essa suposta superioridade moral que os vegetarianistas de bandeira na mão alegam ter sobre mim, especialmente porque são baseados em argumentos falsos e equivocados.
Vi outro dia Lidia Guevara, a filha do Che, nua, boina na cabeça, pose de guerrilheira e armada de cenouras em campanha pelo vegetarianismo. Seu pápi, quando mandava na prisão cubana de La Cabaña fuzilava algumas dezenas de cubanos por dia. Sua suposta superioridade moral lhe dava essa liberdade, afinal o que fazia era pelo bem da humanidade.
A contradição moral é a mesma, o PETA por exemplo acha normal sacrificar 97% dos animais que recolhem pelas ruas (www.petakillsanimals.com). Os fins justificam os meios.
O Homo vegetarianus também se considera um ser moralmente superior, e acha que o que faz é pelo bem da humanidade. No extremo deste pensamento estão os ativistas que explodem carrinhos de hambúrgueres. No centro estão pessoas como George Guimarães que acham que devem impor ao resto da humanidade sua visão de mundo.

11 comments:

Lelec said...

Caríssimo Fernando,

Para mim, uma das coisas ótimas da blogosfera é poder encontrar gente habilitada para falar de coisas que me interessam, mas das quais entendo pouco.

Essa questão da alimentação da população mundial é algo que me interessa, e da qual pouco entendo.

E você escreveu com muita propriedade e rebateu às críticas dos vegetarianos com argumentos muito consistentes. Parabéns.

Não tenho nada contra vegetarianos. Mas essa suposta superioridade moral deles sobre nós (carnívoros) não desce.

O pior de tudo, o pior de tudo mesmo, mon ami, é que estou na França, um lugar onde não se sabe fazer carne vermelha, e onde a carne não tem um décimo da qualidade da carne sulamericana. Aí tenho que ouvir os argumentos desse Guimarães enquanto tudo o que eu mais quero é um bom pedaço de picanha.

Abraço

Beto Marinho said...

Muito bom texto Alma!
"Se Deus não quisesse que comêssemos as vacas não as teria feito de Carne" Homer Simpsom

Julia Rocca said...

Argumento dos vegans 1: comer carne não é natural.
Que besteira! Claro que é natural.
Ter um monte de filhos também é natural, mas, apesar disso, eu prefiro usar contraceptivos.
Natural não significa bom, nem ruim.

Argumento dos vegans 2: os humanos comem carniça.
Resposta: a carne é congelada para não ser carniça.
Verdade. Isso nem é um argumento.

Argumento dos vegans 3: temos tecnologia e ciência suficiente pra não precisar comer carne.
Esse argumento é verdadeiro, vai... Convenhamos, tem trocentos estudos mostrando que dá pra comer carne e ser saudável. Essa parte é indiscutível. Ela não prova que devemos deixar de comer carne, mas que é possível fazer isso, caso desejemos.

Argumento dos vegans 4: Comer carne é cruel.
Resposta: Animais sofrem na natureza e não sofrem nos criadouros.
Bom... Depende do que se chama "sofrer". Alguns índices fisiológicos dos animais são monitorados quando eles estão em criadouro, mas eu não acho que sofrimento se reduza à índices fisiológicos.
Por essa lógica, a grande maioria dos praticantes de esporte radicais estariam em sofrimento, porque demonstram sinais de stress, mas eles fazem isso por prazer.
Talvez os animais trancados possam ter uma longa vida besta... Se isso é sofrimento ou não, cada um decide.

Julia Rocca said...

Argumento dos carnivorianos 1: é cruel que crianças não possam comer carne e tenham anemia.
Apesar de não haver nenhuma proibição, a quantidade de crianças com anemia continua muito alta porque carne é cara.
As crianças precisam ter direito a uma alimentação nutricionalmente adequada - tanto faz que seja vegetariana ou carnivoriana.
Não há nenhuma prova empírica de que o vegetarianismo gera anemia em crianças, então esse argumento é simplesmente errado.

Argumento dos Carnivorianos 2: há nutrientes que só podem ser obtidos com a carne.
Mentira. Todos os nutrientes podem ser obtidos se a pessoa tomar leite e ovos. Se a pessoa excluir isso também de sua dieta, eventualmente terá que pagar 3,50 em uma injeção de B12.

Argumento dos Carnivorianos 3: tri-atletas vegetarianos devem tomar suplementos.
Todos os tri-atletas (inclusive os carnivorianos) devem tomar suplemento porque é um jeito prático de conseguir nutrientes.
O que isso tem a ver?

Argumento dos Carnivorianos 4: o aumento de renda gera um aumento de consumo de carne.
Também gera um aumento no consumo de celulares, mas isso não prova que celulares são indispensáveis para o homem, né? Ou mesmo desejáveis.

Argumento dos Carnivorianos 5: eu não conheço vegetariano pobre.
Bom... Acho que o cara não conhece muitos vegetarianos, né?
E o que isso prova? Eu não conheço muitos ateus pobres, então o ateísmo é melhor ou pior por isso?

Argumento dos Carnivorianos 6: pra quem não tem dinheiro, a dieta carnívora é melhor opção.
Ele teria que trazer um dado empírico aqui. Se é relato versus relato, fico com o meu: a dieta vegetariana é bem mais barata que a dieta carnívora.

Julia Rocca said...

"Vamos então imaginar que a humanidade passasse a se alimentar de frutas e legumes que a natureza nos oferece. Em 2050 seremos mais de 9 bilhões de pessoas no planeta. Para alimentar essa gente toda com frutas e legumes seria preciso derrubar todas as florestas existentes no planeta. É uma bizarra maneira de defender a natureza."

Eu precisaria de comprovações empíricas ou via modelos matemáticos para acreditar nisso.
Assim, como foi escrito, é apenas um chute.

alessandra said...

Outro dia estava em Bhte, no MC'Donald e duas moças comentavam, enquanto saboreavam seus sanduiches, do cara que fez a experiência para provar que hamburguer faz mal a saúde, e por conta disso ficou 30 dias comendo só hamburgueres ( café da manhã, almoço, lanche e jantar), no final do mês ele apresentava, várias problemas de saude, tipo: aumento de peso, pressão e etc. Claro que a pesquisa tinha sido divulgada pelo fantástico, e o método do cara foi radical demais... As duas argumentavam. Então não resisti a tentação e perguntei se podia opinar, elas muito simpáticas disseram que sim, daí sugeri que agora a experiência deveria ser feita com alface, o cara deveria comer só alface, o dia inteiro, só isso! A intenção seria é claro provar o quanto ALFACE faz bem para a saúde!!!! Será que álguem toparia ser cobaia??? Morremos de rir, e ficamos imaginando, quanto tempo o cara iria sobreviver, 10 dias? 15? Hehehehehehe

Julia Rocca said...

A argumentação da colega aí de cima é uma bobagem (com todo respeito).
Quem assistiu o documentário, viu que o cara propôs a dieta no Mac Donalds porque essa lanchonete apresenta seus lanches como "refeições" e não apenas como "snacks". Ele não tentou viver de Doritos ou de Sorvete porque essas empresas não vendem a idéia de que seus produtos são "refeições".

Nenhum produtor de alface diria que seu produto é uma "refeição", mas, se o fizesse, caberia a mesma crítica.

Para fazer a experiência que vocês propõe, seria necessário escolher um restaurante vegetariano que vende refeições e passar um mês se alimentando lá.
A segunda regra é que todos os alimentos do cardápio deveriam ser consumidos (como no caso do rapaz do Mac Donalds).
Eu aposto em qualquer dia que, como resultado, a pessoa terminaria o mês mais saudável do que começou.

Mas eu nem sei porque me dou ao trabalho de discutir um comentário como esse...

Alma said...

Julia
Eu não conheço mesmo nenhum vegetariano pobre, isso é luxo de rico. E felizmente, pobre no Brasil tem aceso a carne sim. E no resto do mundo, nossos maiores mercados estão em países emergentes. Como eu disse, quando se tem fome carne é ao mesmo tempo necessária e desejada. Feliz você que pode tomar suas vitaminas e comer danoninho todo dia.
Carne é cara mas felizmente o Brasil é o país que pode fornecê-la ao mundo a um preço cada vez mais acessível.
Você acha que o impacto ambiental de alimentar o mundo com leite, ovos e legumes seria menor??
Pense bem.

Julia Rocca said...

Não faço uso de nenhuma vitamina ou aditivo. Também não como danoninho - embora não sei o que isso importa à discussão.

Eu tive uma infância muito pobre, chegando a passar fome em alguns períodos. Atualmente, ganho o suficiente para pagar minhas contas - apenas isso.

Eu sei, por experiência própria, que a dieta vegetariana é mais barata que a dieta com carne. Isso é fácil de inferir para quem já fez as duas dietas e controla o orçamento familiar. Agora, claro, meu relato não é suficiente como dado científico a respeito do valor total da dieta vegetariana (e nem pretende ser).

Respondendo a sua pergunta: sim, eu acho que o impacto de alimentar o mundo com leite, ovos e legumes seria bem menor. Eu imagino que a quantidade de água e plantas utilizadas para produzir um quilo de carne é muito grande e, portanto, ela poderia ser conduzida diretamente para a alimentação de pessoas.

O meu achismo, nesse ponto, não é melhor que o seu. Ambas teríamos que apresentar dados concretos comprovando o impacto ambiental em um e outro casos.

E, de uma forma ou de outra - e este é o ponto importante - a decisão a respeito da dieta não é baseada somente no impacto ambiental que ela causa. Vários dos nossos hábitos poderiam ser alterados para causar menos impacto, mas, em geral, não estamos dispostos a modificar nosso estilo de vida por esse motivo. Pretendemos produzir pouco impacto desde que mantenhamos certos hábitos que nos são caros.

Vegetarianos não deixaram de comer carne para produzir menos impacto no ambiente (ainda que talvez o façam), mas para não financiar as criações extensivas de animais. Eles, em geral, consideram que há sofrimento envolvido nesse tipo de criação e pretendem diminuir e/ou não ser responsável pela manutenção de um sistema que, na opinião deles, gera sofrimento.

E, observe: eu não defendo que todas as pessoas se tornem vegetarianas, mas apenas que aquelas que decidirem fazê-lo, não sejam incomodadas por sua opção.

Eu não tenho um blog para criticar as pessoas que comem carne e gostaria de não ter de ler textos criticando quem não come. Mas, caso tenha, que os argumentos sejam bem articulados e evitem falácias.

Alma said...

É Júlia, meu achismo não é tão achismo assim, já que estudei o assunto (produção de alimentos e mercado de carne) a vida inteira e trabalho com isso hoje.
Também não tenho pretensão nenhuma de dizer o que outros devem comer, beber, ler ou pensar. Só não engulo essa suposta superioridade moral que vegetarianos alegam ter sobre mim.

Julia Rocca said...

Alma, já que você trabalha na área, eu ficaria muito agradecida se você me mandar referências a respeito do custo/benefício da produção de alimentos e ou do consumo destes. É um assunto que me intriga.

Observe que em nenhum dos meus posts eu aleguei qualquer superioridade moral de vegetarianos para não-vegetarianos. Aliás, acho o conceito de "superioridade moral" bastante discutível em qualquer contexto, e não apenas no contexto da seleção de dietas.

Eu sei que existem vegetarianos que defendem coisas desse tipo, mas eu não sou um deles.

Por outro lado, não vou aceitar ouvir que defendemos ou somos responsáveis pelo índice de crianças anêmicas no país (Ahn?) ou que é impossível alimentar-se de forma saudável sem comer carne porque essas coisas são simplesmente mentiras.

Os argumentos de que "vegetarianismo é coisa de rico", "pessoas ricas tendem a comer mais carne" (é engraçado que parece até contraditório) podem até ser verdadeiros, mas não constituem razão para adota uma ou outra dieta. Eu não evito uma certa prática apenas por que ela é majoritariamente realizada por ricos (ou pobres, ou pessoas de bigode).