Tuesday, July 06, 2010

Heróis da Resistência


Tempos atrás, era costume das famílias rezar antes das refeições. Sim, rezar para agradecer o alimento recebido. Luiz Felipe Pondé diz que muitos teólogos, sejam eles judeus, cristãos ou muçulmanos afirmam que a única teologia verdadeira é aquela que agradece.
Os americanos, estes porcos imperialistas, têm até um dia especial no ano para agradecer a Deus não só pela mesa farta à sua frente, mas por tudo o que receberam.
Não custa lembrar, os períodos de colheita em toda a história da humanidade sempre foram celebrados em festividades religiosas, como até hoje é o caso das nossas festas juninas.
Infelizmente, nos dias urbanos e de fast-food em que vivemos, comendo às vezes até de pé, damos nossas refeições por garantidas.
Nossas crianças acham que o leite nasce dentro da caixinha tetra-pak e o bife é espontaneamente gerado em bandejas de isopor. Achamos que a comida vem do supermercado, que sempre estará ali, repleto de queijos já prontos, manteiga já batida, carne já desossada, frutas já cortadas, e saladas já lavadas, além de todo o assortiment de guloseimas pré-fabricadas de composição indefinida prontas a garantir a nossa obesidade.
Não temos mais idéia do que é o trabalho de plantar, colher, cuidar, ordenhar. E por incrível que pareça, nos esquecemos de agradecer também quem faz esse trabalho por nós.
São produtores rurais, estes impressionantes personagens que entendem um pouco de terra, um pouco de água, um pouco dos ventos e das chuvas, das plantas e dos animais, e ainda precisa entender de dinheiro.
Vou falar de um Produtor Rural.
Há muito tempo seu pai lhe levou para aquelas paragens. O governo dizia para migrarem, para derrubarem a mata e assim teriam terras. Dormiam em casa de pau a pique, teto de palha e chão batido, lampião de querosene e fogão de lenha. Abriram mata, semearam e colheram. Criaram bois. Deu certo. Ele, que era menino, virou Produtor Rural.
O Produtor Rural não estudou, é fato, embora tenha feito todo o esforço do mundo para que seus filhos pudessem ir à faculdade. Mas não é ignorante. Conversa com gente nova, aprende coisas. Melhora sua plantação, compra máquinas. Usa adubos, sementes, insemina o gado. O que ele produz hoje na mesma fazenda é com certeza bem mais do que seu pai produzia. Ele e outros, mesmo sem saber sustentam a economia de todo um país.
Mas anos depois aparece um fiscal do governo em suas terras. Diz que ele está ilegal porque plantou café no morro e não pode. Aplica uma multa porque na beira do rio onde o boi bebe água deveria estar cercado, e no “corguinho” que passa na fazenda devia ter 15 metros de árvores dos dois lados, embora ele explicasse que quando foram para lá ninguém lhes falou dessas regras.
Aparece outro fiscal, e lhe dá multas porque ele deveria por banheiros para seus empregados lá no meio da roça, como se ele algum dia tivesse tido esses luxos. E outra multa porque seu tratorista come sua marmita debaixo da árvore quando deveria ter um refeitório para comer.
Outro dia vem um outro rapaz estudado, e diz que seus bois deveriam ter brinco, e que cada uma deveria ter um documento de identidade. Diz que os europeus estão preocupados com isso e querem os brincos porque é mais saudável. O Produtor Rural não entende muito bem porque para ele mais saudável que aquele boi seu que passou a vida ali no pasto não existe, e se pergunta se boi europeu tem aquela vida boa. Mas vai na dele e põe brinco em tudo. Depois lhe dizem que as regras mudaram, e o que ele fez precisa ser refeito.
Aí aparece um outro cabeludo, com sotaque de gringo. Fala que quer preservar a biodiversidade, que o mundo todo está muito preocupado e diz que se ele plantar árvore um dia vai receber por aquilo. Mas quem é da roça desconfia, e normalmente se é pra fazer serviço quer ver a cor do dinheiro antes. Ele pergunta ao moço se no país dele tem muita mata, e ouve que não, e que é por isso que ele devia plantar mais árvores ali.
Uma moça toda arrumada diz que é do supermercado, e vem falando coisas bonitas como paradigmas, sustentabilidade, mudanças climáticas, e diz que o consumidor está muito preocupado, e lhe dá um manual de regras pra seguir.
Um outro rapaz de sandália de couro e bolsa de tricô diz que é da ONG, e traz um calhamaço de leis que o Produtor nem sabia que existiam. Diz que a sociedade está muito preocupada, porque quase todos os Produtores são ilegais e ele não deveria continuar assim.
Aí aparece um doutor do Governo, diz que tem que zelar pelo bem do País e pela Constituição, e que o Produtor deve assinar um papel e ajustar sua conduta, que ele não sabia que estava desajustada. E se ele não assina não pode mais vender nada para ninguém.
Uma outra moça, cara de francesa, chega e fala que está muito preocupada lá onde ela mora porque o clima do mundo está mudando, e ela diz que as vacas dele estão esquentando o mundo. O Produtor se espanta e dá risada ao perguntar como.
Um outro doutor, estudado, diz que a fazenda dele é na verdade terra dos índios, e que está preocupado com os índios porque nós matamos quase todos eles, que eram os donos do Brasil. Tem índios ali perto, já donos de bastante terra. O Produtor viu uma vez o governo construindo casas para os índios, e dando cestas básicas aos índios dali. E viu o material de construção das casas sendo vendido na cidade, e as cestas trocadas por pinga.
Aí aparece um padre, com uns índices na mão. Diz que o produtor não produz o que está escrito ali, e que portanto a terra dele devia ser dada para quem precisa. O padre está muito preocupado com os excluídos. O Produtor pergunta quem são os excluídos, e reconhece ali um povo que nunca trabalhou em roça. Tem garçom, ajudante de pedreiro, tem até funcionário público. E ele vê esse povo recebendo dinheiro do governo todo mês. E se pergunta se o excluído não é ele que paga um monte de imposto e ainda tem que pagar escola para os filhos, seguro saúde e ainda anda em estrada esburacada, sem receber dinheiro nenhum do governo de volta.
O Padre volta com outro doutor, que quer que ele prove que um dia no passado o governo realmente fez um papel dizendo que aquela terra era do seu pai. O Produtor pensa que se o governo durante esse tempo todo cobrou impostos dele por aquela terra é porque sabia que era dele, ou não?
Aí o Produtor vai no banco, quer emprestar para investir e produzir mais, plantar árvore. E um gerente do banco, que diz que está muito preocupado com o planeta e o clima diz que só empresta se ele cumprir todo um outro livro de regras. O Produtor se pergunta se o dono do banco sabe se o dinheiro que está ali vem de drogas, de jogo, de corrupção de políticos, de venda de madeira ilegal. Mas se cala e desiste daquilo.
Então o Produtor vai dar uma volta na cidade. Ele vê favelas nos morros de tudo quanto é jeito, e depois vê na TV que o morro desabou na chuva e um monte de gente morreu e se pergunta se o moço que disse que não podia plantar no morro tinha ido lá ver aquilo. Vê um monte de esgoto sendo jogado no rio e se pergunta se o doutor que queria zelar pelo bem do País foi atrás de quem fazia aquilo. E vê no jornal que o chefe do fiscal que lhe havia multado foi preso por tráfico de madeira. Vai no supermercado, e em sua economia simples faz uma conta e vê que o quilo de carne vendido ali custa quase dez vezes mais o que ele recebeu pelo boi, embora ele tenha ficado três anos cuidando do bicho e o supermercado três dias cuidando da bandejinha. E vê o povo comprando o que é mais barato mesmo, e se pergunta se tudo o que está ali segue as regras que a moça arrumada lhe deu para seguir.
O Produtor começa a desconfiar que aquele povo todo preocupado que foi na sua fazenda está preocupado mais é em justificar os próprios empregos uns aos outros. Todos tem trabalhos tão bonitos, é consultor disso, coordenador daquilo, empresa de governança, ONG de sustentabilidade, tem até uns cargos em inglês que ele nem sabe o que são. Ele é do tempo em que você sabia o que a pessoa fazia. Era o açougueiro, o peão, o padeiro, o sapateiro... Então ele decide que não quer fazer mais nada daquilo.
Chamam-no de turrão, ignorante, reacionário, desconfiado, atrasado. Dizem que ele não quer se adequar aos novos tempos, não entende como funciona o mundo, não liga para a natureza e nem para a sociedade. Logo ele que passou a vida aprendendo como a natureza funciona e que faz comida para esse povo todo.
E o Produtor vai lá para o seu fim de mundo, em uma estrada esburacada e esquecida, escutando no rádio que o copeiro do Palácio ganha R$ 9.000 reais por mês, e que mais alguém havia sido pego com dinheiro na meia ou na cueca.
Apesar de tudo continua produzindo.
Não, nós não agradecemos pela comida. Nós pegamos quem a produz e colocamos no cantinho da sala, ajoelhado no milho, com um chapéu de burro na cabeça. Nós pegamos o Produtor, lambuzamos ele de piche e jogamos penas de galinha em cima, fazendo-o perambular pelas ruas da cidade. Podemos também colocá-lo numa gaiola para que seja cuspido e apedrejado por quem passar.
Ou, melhor ainda, vamos costurar uma Estrela de Davi nas roupas de todos eles, para podermos identificá-los bem. Como estão quase todos na ilegalidade, poderemos colocá-los todos fechados em um campo de concentração. Então será fácil tomar essas terras e aí sim poderemos produzir como se deve, deixando o mato crescer, a Terra esfriar e todos os índios e animais felizes na floresta.
Eu sempre tive um respeito nato por quem produz, simplesmente pelo heróico ato de produzir.
Hoje, meu respeito é também pelo heróico ato de resistir. Resistir a uma sociedade obcecada pelo controle da vida alheia em todos os aspectos. Resistir a uma relativização de direitos básicos de toda sociedade democrática. Resistir ao despotismo estatal. Resistir à ditadura de minorias. Resistir ao globalismo ecológico. Resistir a uma Justiça parcial. Resistir à centralização de poder. Resistir à delegação de responsabilidades. Resistir em suma ao fascismo que se desenha em nosso futuro.
Sei que é luta inglória e que fatalmente a Resistência cairá. Mas tenho meu respeito declarado e minhas armas à disposição da luta.
E hoje rezo não só para agradecer o prato de comida à minha frente, mas para pedir que ele continue aparecendo sempre.

2 comments:

Ari said...

Valeu. Obrigado, pelo post e pela resistência.

Anonymous said...

Penso como voce. Essa turma alimenta e sustenta o Brasil. Que Deus os guarde!