Monday, December 15, 2008

A minha avó


Eu imagino minha vó Lecticia chegando no céu.
Cabelo impecável, unhas feitas, vestido cintilante.
As portas se abrem e de repente ela está em um salão de baile.
Meu avô a espera, terno branco, sorridente. À sua direita seu irmão, cuja falta sempre foi tão sentida, e logo atrás sua irmã. Sinatra está cantando, o baile vai ser bom.
Os amigos também estão todos lá. Eles têm muito o que rir, conversar e dançar até o fim da noite. Amanhã quem sabe aquela partidinha de buraco. E no outro dia, mais festas.
Tentei lembrar de algum momento triste ou entediante passado ao seu lado, não consegui. Todos os minutos de minha vida em que estive ao lado de minha avó foram de genuína felicidade, especialmente nos Natais de minha infância.
Costumávamos arrumar a árvore de Natal juntos, os netos e ela. Levar o menino Jesus na Igreja para ser benzido. Montar o presépio. E me vêm à memória os sabores dessas receitas da Itália profunda que saboreávamos nesses dias de festa, com a famiglia toda reunida: a pastorale, o canaricole e o célebre fusilli al ferretto com molho ragu.
Minha avó era filha de imigrantes pobres, mas viveu sempre alegre como seu nome profetizava. Ainda me lembro das lágrimas de felicidade em seus olhos sempre que relembrava o dia em que ganhou seu primeiro vestido para ir a um baile.
A menina que nasceu pobre e viveu em fazenda estudou, se casou, criou uma bela e numerosa família, saiu para ver o mundo e voltou sempre com um sorriso nos lábios. E sempre que a família se juntava lá estava ela, no centro da festa.
Mas este mundo, que chorou tanto quando ela se foi (até a chuva parecia choro) estava talvez se tornando um lugar rápido demais, violento demais, sujo demais, e pior de tudo, deselegante demais. Ela se foi de repente, como convém a alguém com sua vitalidade.
No apartamento vazio, reparei pela primeira vez em um sorriso maroto de meu avô no velho porta retrato. Minha vó, tenho certeza, está muito bem.
Nós é que ficamos aqui em meio a essa tristeza toda, tentando ter pelo menos uma fração da alegria que ela tinha em vida.

6 comments:

Lelec said...

Puxa, Fernando, cher ami... Que texto bonito...

Desejo que você e sua família encontrem conforto e alento nesses momentos trêmulos. E que as doces lembranças da sua avó lhe sejam sempre um abraço quente e gostoso, como o aconchego com que ela sempre lhe acolhia.

Forza!

Lelec

bete p.silva said...

Noto que de uns tempos pra cá o céu tá ficando cada vez mais atrativo, agora com dona Lecticia então...o céu é lugar de elegantes, nós? nós vamos ficando por enquanto aqui.

Até aprendermos a ser elegantes e irmos também.

O natal será bom, sim, Fernando. Dona Lecticia deixou sua fração de alegria em você.

Ricardo Rayol said...

Meu amigo, ainda bem que temos um baile para ir depois. Se ela deixou somente bons momentos cumpriu sua missão.

Sandra Leite said...

Fernando

Já pensei no que vão pensar qdo eu partir. Todos iremos um dia. A história de D. Letícia é linda, cheia de poesia, de recortes de vida que é vivida, mas também desejada. Tem música, tem baile. Tem amor, tem vestidos. Tem sentimento. Ela não caiu no planeta por acaso, ela fez ele acontecer. E tudo veio a existência, Fernando. Inclusive um neto lindo, idealista e com um coração como o seu. A herança da sua avó está no seu DNA, querido! Ela vive no encontro que teve em você.

Fernando, você sabe me fazer rir, mas me emociona muitíssimo. Hoje eu tremi ...

Bom é ser assim.

Estamos aí ;)

beijos

Alice said...

Mamãe era a alegria também, mas com um "c": Lecticia.
Segundo ela era a "alegria que gosta de ler".
Vc e ela seriam grandes amigos!
Ela faleceu há 3 anos e maio, aos 66 anos.

Alma said...

Obrigado amigos!
Fernando