John se levantou cedo naquele dia e tomou seu suplemento obrigatório de ferro e vitaminas. O medicamento era distribuído pelo governo desde que a população começara a apresentar sinais de desnutrição cerca de três meses após a aprovação da lei McCartney-Guevara que proibia a venda e consumo de carnes.
Saiu para cumprir o ritual diário de exercícios aeróbicos matinais. Os inspetores do Ministério da Saúde passariam em revista a sua turma, composta por gente da vizinhança, para controlar o teor de gordura do corpo. Na semana anterior ele levara o seu segundo cartão amarelo por ter ultrapassado em 0.5% o teor de gordura permitido por lei para pessoas de sua idade. Tinha se esforçado e concentrado nos exercícios para evitar o cartão vermelho, que fatalmente o enviaria a um dos campos de reeducação alimentar do Ministério.
Ele já tinha estado em um antes, ainda quando comprava hamburguers no mercado negro e criava galinhas escondidas no quintal. Denunciado por sua própria filha de sete anos, treinada para denunciar abusos pelos professores da escola primária, foi condenado por tráfico e produção irregular de alimentos com base no Codex Alimentarius da ONU, adotado pelo Ministério. A filha foi premiada na escola, e designada a pais adotivos.
Foram anos duros, trabalhando na horta orgânica do campo de reeducação. Mas John felizmente passou no teste da gordura e pode seguir seu rumo. Com sua bicicleta, passou em frente aos coffee shops que vendiam marijuana na rua de sua casa e seguiu para o Ministério do Meio Ambiente onde deveria entregar sua declaração mensal de emissão de carbono e de uso de água. Isso não o preocupava. Depois do ano anterior, quando havia pago o equivalente a um ano de trabalho por excesso de emissão de carbono, havia deixado de usar eletrodomésticos e luzes elétricas em casa, e um banho por semana lhe parecia suficiente.
Aquele dia ele iria visitar a esposa, presa em flagrante por fiscais do Ministério da Saúde fumando um cigarro na saída do trabalho. A pena iria acabar em seis meses, então poderiam viajar de bicicleta, quem sabe visitar um parque, ver os índios.
Saiu do Ministério e parou no posto de distribuição de ração, à base de cereais orgânicos. Os níveis de contagem microbiológica de alimentos conservados em casa eram praticamente impossíveis de serem alcançados. Somado a isso, a impossibilidade do uso de fogão a lenha ou a gás, e as restrições ao uso de eletricidade faziam o ato de cozinhar em casa um quase milagre. As rações eram a alternativa mais fácil. Pensou no chocolate que mantinha secretamente embaixo do assoalho em casa. Um pedacinho só não ia fazer mal. Um amigo seu tinha sido preso por vender coca cola no mercado negro. Mas ele não vendia seu precioso chocolate, era só consumo próprio. E a pena, se fosse pego era bem menor.
Na televisão notícias sobre celebridades e sobre nutrição. Ele sabia, haviam rumores de que mais de um bilhão de pessoas tinham falecido no Terceiro Mundo depois que o Codex Alimentarius havia proibido o uso de pesticidas, adubos ou qualquer outro químico na produção de alimentos, e o uso das terras mais férteis para a plantação de árvores. As notícias eram censuradas, e o Ministério dizia que eram bem menos mortos, e que era preferível dar os anéis do que perder os dedos. Havia alguma coisa estranha aí. Ninguém falava mais no aquecimento global, as cidades da costa não tinham sido engolidas pelo mar mas o Ministro dizia que era por causa das medidas que tinham adotado. Alguns cientistas tinham até desaparecido de cena quando divulgaram estudos afirmando que uma nova Era Glacial se aproximava.
Mas John não queria pensar muito nisso. À tarde foi a um concerto. A lei havia determinado o fim dos shows com equipamentos elétricos e grandes aglomerações, e as únicas apresentações permitidas eram as rodinhas de violão.
No fim, apressou o passo, estava escurecendo. Desde que os animais ganharam na justiça o direito de ir e vir como seres humanos, os bandos de cachorros soltos na noite sem luzes faziam as coisas ficarem um pouco sombrias e perigosas por ali.
5 comments:
Fernandão,
Parabéns cara, um puta texto, merece aplausos e divulgação.
Não sabia que vc também era bom na ficção...
Tomare que isso não se torne uma profecia como a de Huxley (http://www.olavodecarvalho.org/textos/huxley.htm), que vem cada dia mais se mostrando real, aliás, cade meu soma???
Abração,
Bode
Tá uma sinistra mistura de Huxley com Orwel, de meter medo cara. Podes crê, o fim da próximo arrependei-vos kkkkk
Por via das dúvidas vou começar um estoque de chocolate.
Que medão!!! Pior que ultimamente estou vendo estas teorias circularem no trabalho... por sorte a maioria das pessoas são incorretas pra chuchu, medo é da minoria organizada e que vai regulando tudo. Tô tentando relatar algo do que venho ouvindo, mas as sinapses não estão ajudando rsrs o bebê está tribem e a mãe está muito mais lenta! rsrs
Posso divulgar o texto? citando o blog, claro.
claro Lelê!
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