Thursday, October 16, 2008

Ensaio Sobre a Cegueira


Ensaio sobre a Cegueira conta a história de uma cidade tomada de surpresa por uma epidemia de cegueira "branca", como oposto à cegueira normal, onde tudo é escuro.
As primeiras vítimas da doença misteriosa são encerradas em um hospital ou asilo abandonado, completamente isoladas do mundo exterior. A esposa do oftalmologista que teve o primeiro contato com a doença acaba sendo internada junto com o marido, mas por um misterioso acaso ela é a única que não foi contaminada pela cegueira, e por consequência a única que consegue ver dentro do asilo.
Neste microcosmo, as relações humanas vão se degradando na luta pela sobrevivência diária, e o local vai se tornando inabitável à medida que excrementos e lixos se acumulam pelos corredores. Para piorar, um auto-proclamado Rei de uma das alas do asilo passa a controlaro estoque de comida e a extorquir os outros cegos, primeiro por dinheiro, depois por mulheres.
Quando percebem que a epidemia se espalhou até pelos guardas do lugar é que os cegos liderados pela esposa do médico vão ganhar as ruas e perceber que o caos do asilo se espalhou pela cidade inteira.
Não li o livro de Saramago ainda, mas vi esta semana o filme de Fernando Meirelles. E achei o filme genial. Como o livro deve ser. É engraçado notar as reações de gente que não captou o sentido da obra. Em Cannes, um repórter perguntou a Meirelles porque o oftalmologista não teria usado a esposa para produzir algum tipo de vacina ou cura e salvar o resto, como se aquilo fosse um hollywoodiano I am Legend ou Outbreak. Nos Estados Unidos, associações de cegos estão boicotando e escrevendo manifestos contra o filme por considerarem que os deficientes visuais são retratados de maneira degradante e pejorativa. É o famoso não vi e não gostei. O que dá uma idéia de como anda a média intelectual no país e aque ponto chegou o politicamente correto por lá.
O que essa gente não entende é que a Cegueira Branca de Saramago é puramente metafórica.
No meu entender, como o branco representa um excesso de luz, e não a falta dela, a cegueira branca seria esta espécie de anestesia em que nos encontramos neste mundo que de repente se tornou demais para nós.
Somos bombardeados com excesso de informação, guerras do outro lado do planeta são jogadas em nossa sala de estar, crises americanas atravessam o planeta em segundos, sexo vende desde cigarros a automóveis, nossa vida corre 24hs por dia, sete dias na semana.
Aí ficamos cegos.
Não estamos nós também mergulhados em sujeira, na poluição das cidades, destruindo os lugares onde vivemos?
Você enxerga aquela criança pedindo esmola no sinal?
Ou aquela mãe com cinco filhos na sarjeta?
Prefere não ver?
Não sente mais nada?
Não vê mais a favela se espalhando?
Nem aquele corpo jogado no canto da rua?
Ou aqueles corpos todos na macabra contabilidade diária da guerra do tráfico?
Nem as prostitutas na calçada?
Nem os corruptos no Congresso?
E não estamos todos nós uma hora ou outra prostituindo e corrompendo nossos princípios morais por dinheiro ou poder, em casa, no trabalho, ou na vida pública?
Como no asilo dos cegos de Saramago, estamos ocupados demais com nossas próprias necessidades para enxergar alguma coisa.
E consideramos boçalmente que se todo mundo faz, nós também podemos fazer o que nos dá na telha. Se ninguém está te enxergando mesmo, o que importa magoar alguém, sujar alguém, matar alguém?
Isso é especialmente verdade nas grandes cidades, e não é à toa que a história se passe em uma grande cidade fictícia (magistralmente montada por Meirelles com cenas de São Paulo e Montevideo). Mas é uma verdade especialmente mais perigosa hoje, onde mais da metade da humanidade está vivendo em cidades.
Para aqueles que conseguem enxergar o que ninguém vê, como a esposa do oftalmologista (o anjo pálido de Julianne Moore no filme), o mundo vira um lugar horrível de se viver, e a humanidade, um fardo.
Abra os olhos. Está tudo branco?

6 comments:

Sandra Leite said...

Fernando Sampaio (ou meirelles?)

Perfeita a sua visão do filme. Na realidade só li o livro que é magistral. Dói. Esses dias não me permitem filmes assim. Estou dando um tempo. Mas alguém vê o que é diferente? Se incomonda com a exploração sexual de crianças? Se importa com idosos sem esperança? Favela? Não é meu problema, já faço a minha parte. É assim que a triste classe média pensa, vive e reproduz. E é assim que caminha a humanidade. Cega!
Seu blog me trouxe uma inspiração ...Amelie Poulain. Tá lá...

beijos

Ricardo Rayol said...

Irei ver, trocadilhozinho fajuto. risos

deboraHLee said...

Très cher Fernando,

Sorry pelo sumiço. Me enrolo em mim mesma de tempos em tempos, vc. sabe.

Olha, li o livro há muitos anos e vi o filme , coincidentemente, hoje. E ADOREI!!!!

Um dos poucos filmes vindos de livro que são tão bons quanto (outra ressalva foi 'O Caçador de pipas': vi primeiro o filme, adorei e fui ler o livro que, por puro preconceito, ainda não tinha lido. E amei.)

Mas que a burrice a estreiteza de espírito da galera chocam, ah... chocam muito!

Saramago é genial!!
Já leu 'o evangelho segundo jesus cristo'?

beijão!
d.

Lelê Carabina said...

Olá! Já li o livro e o tenho na estante, é muito bom mesmo. Espero ter a mesma impressão do filme. ;-)

Lelec said...

Oi Fernando...

Li o livro e o adorei. Por isso, não verei o filme. Normalmente, minha experiência imaginativa fica mais pobre quando vejo filmes de livros que leio. Mas tenho certeza de que o filme é bom.

Saramago é um autor extraordinário, que me faz refletir muito. O "Evangelho segundo Jesus Cristo", sugerido pela Deborah, me marcou profundamente.

Quanto ao protestos, concordo com você. Esse negócio de politicamente correto está deixando o mundo mais burro.
Abraço,

Lelec

Leila Silva said...

Pois é, o filme é bom mesmo e o livro também, leia quando puder.
Essa pergunta do jornalista em Cannes é demais, não tinha ouvido isso ainda. Que imbecil.

Boa viagem.