Saturday, July 26, 2008

Dona Ruth, Ignácio de Loyola Brandão e Araraquara


No Estadão, há uma página especial com links de textos de escritores e intelectuais dedicados à memória de Dona Ruth Cardoso. Dá para ver o quanto ela era querida e admirada.


Dona Ruth era da cidade de Araraquara, como eu. E como Ignácio de Loyola Brandão, o escritor. Embora tenha vivido pouco tempo por lá, Araraquara é minha terra natal, é para onde vieram meus bisavós italianos, é onde sempre passei férias com a família. E por isso traz sempre boas lembranças, como trouxe ao meu conterrâneo escritor quando falava da nossa outra conterrânea famoso. Mais ainda porque conheço as pessoas de quem ele fala neste texto:




O meu adeus a Ruth Cardoso
Ignácio de Loyola Brandão*

Noite de terça-feira, quase 11 horas, estava começando a dormir, tive três dias de trabalho quase forçado, fui cedo para a cama. Meu irmão João ligou de Araraquara, informou: dona Ruth Cardoso acabou de morrer, deu no plantão. Um baque, despertei de vez, ficou dentro de mim uma sensação estranha. Ela não era propriamente uma amiga, dessas que freqüentamos, para quem ligamos, com quem comemos de vez em quando. Mas havia uma ligação forte entre nós, motivada por Araraquara, claro, e outros pequenos acontecimentos. Logo em seguida, me ligaram do SBT, queriam um depoimento, recusei, não estava com cabeça para aquilo, marquei qualquer coisa para o dia seguinte, sem perceber que o dia seguinte estava lotado. Não me senti no direito de fazer um depoimento, preferi homenagear Ruth Cardoso no meu espaço.
Quando Fernando Henrique foi eleito, a revista Vogue programou um número especial com a primeira-dama. Sagaz, inteligente, ela foi driblando os editores, alegava que era cedo, não queria falar de política e economia, que era tudo o que perguntavam a ela naquele momento, o marido ainda nem tinha se acomodado na cadeira presidencial. A insistência nossa continuou e uma tarde, chegou ao Andréa Carta, o editor, um recado da primeira dama: ''Concordo em me encontrar com o Loyola, por duas horas, para falarmos de Araraquara, nada mais.'' No dia, cheguei às 14 horas ao apartamento da Rua Maranhão, onde moravam, depois é que se mudaram para a Rua Rio de Janeiro.
A conversa começou tênue, logo o tema se desenvolveu, encontramos nosso primeiro ponto de contacto. O pai de Ruth, seu José, um homem simples, cordato, tinha sido o contador do jornal O Imparcial, de Araraquara, onde fui crítico de cinema, repórter, linotipista, etc. E dona Mariquita, a mãe dela, tinha sido minha professora de biologia no Instituo de Educação. Mariquita era mulher bonita, sorridente, bem-humorada, bastante irônica às vezes, severa em classe. A conversa correu solta, porque eu tinha as referências das parentes dela, das tias beatas que desciam uma avenida todas as noites para a reza, de amigas de juventude como a Maria Alice Lia que se casou com Miguel Tedde Netto, um advogado. Maria Alice me deu aulas de português e de latim por um período. Os laços se estreitavam. E havia o grupo de jovens na época, com quem ela saía, ia ao cinema, dançava no Clube Araraquarense, sendo um desses jovens o Nelson Gullo, hoje meu sogro. E também se falou no Brasilino, o pé-de-valsa (como se dizia) da época e com quem ela adorava dançar. Dança puxa musical e quando comentei que meu sonho tinha sido ser Gene Kelly, ela, que também adorava musicais, rebateu: ''Mas por que você não queria ser o Fred Astaire, mais elegante, estilista, leve?''
E o que deveria ser uma conversa de duas horas, entre 14 e 16 horas, tornou-se um desfilar de coisas e casos e gente e já eram quase 18 horas quando a empregada chegou com o café e ela lamentou, ''pena, eu queria fazer o café para você, igual ao que aprendi com minha mãe''. Naquelas quatro horas tínhamos revisitado uma cidade que existia então na memória, estava guardada na imaginação. Ela se lembrou de Sartre e Simone de Beauvoir, para quem deu um jantar quando estiveram no Brasil. E fez uma sopa de mandioquinha que era sua especialidade e a Simone detestou. No fim, Ruth não se conteve: ''Simone era uma grande intelectual, mas também uma grande chata.'' Acabou sendo um dos perfis mais completos e deliciosos que fiz para a Vogue em meus de 15 anos de redação.
Para completar, fui a Araraquara, conversei com os amigos de juventude dela, revirei gavetas, remexi os armários de Zé Baiano e sua mulher Biluca, dos mais chegados. Zé Baiano era o único em quem José e Mariquita, os pais, confiavam, a ele cabia ser o anjo da guarda de Ruth. Publicamos fotos inéditas da adolescente, vindas de álbuns que havia muito não eram olhados. Ruth Cardoso foi uma jovem deslumbrante, cercada por um bando de rapazes que tentaram e nada conseguiram e ficaram enciumados quando ela apareceu na cidade com o namorado Fernando Henrique Cardoso, que se hospedava no Hotel Municipal. A matéria saiu na Vogue, mas depois, quando escrevi um livro inteiro falando de minha cidade, A Altura e a Largura do Nada, transformei o perfil num segmento inteiro, porque por meio dele se conhecia a vida na cidade, em certa época, era um documento. Ruth sempre foi um dos orgulhos de Araraquara.
Um dia o Ministério das Relações Exteriores me deu a Comenda da Ordem de Rio Branco. No dia da entrega eu não estava no Brasil, marcou-se para outra data uma cerimônia rápida, semi-oficial, sem grandes protocolos. Apareci em Brasília, num dia em que era recebido o presidente do México. Entrei na fila de cumprimentos aos presidentes e quando cheguei perto, Ruth sorriu e disse ao ministro Celso Lafer, ao lado dela: ''Esta tarde será mais de Araraquara do que do México.'' Houve um almoço e mal terminado fui levado pelos labirintos do Itamaraty à sala do ministro. Ali estava Ruth Cardoso e Celso Lafer - a mãe dele morou em Araraquara certa época, até se casar e vir para São Paulo. Uma cerimônia foi improvisada, informal, descontraída, cheia de sorrisos, apareceu ainda o embaixador em Roma, Andréa Matarazzo. Falou-se do quê? Da nossa cidade.
Tivemos encontros esporádicos depois disso, incidentais, sabíamo-nos amigos, ainda que não íntimos, de longa data. Mas era sempre um abraço, um sorriso carinhoso, uma lembrança qualquer, estávamos também ligados por meio do casal Maria Helena e José Gregory, estes, sim, íntimos, de encontros constantes, viagens, por ter um sítio lado a lado. Não, não fui à Sala São Paulo para o velório. Guardo dela nosso último encontro no CineSesc, na Rua Augusta, ela adorava cinema. Fiquei com aquela imagem. Esta é uma primeira-dama que o Brasil jamais esquecerá. Sentiremos muito sua falta.

No comments: