Saturday, September 02, 2006

Conto - A mulher do cego

Ninguém sabia porque a Isadora casara-se com o Sebastião. Talvez fosse por pena, mas ali na ilha ninguém acreditava que alguém como a Isadora pudesse ser piedosa assim.
O que ela queria é que todos a admirassem, não porque era morena da cor de açúcar mascavo, sedosa e sensual, com os cabelos negros encaracolados. Queria ser reconhecida, apontada e bem falada por cuidar do marido com tanto zelo. Talvez fosse como naquele livro de Steven Zweig, onde uma paralítica força um soldado a se apaixonar por ela chantageando-o com sua própria piedade. Beware of Pitty. Mas nesse caso era o contrário, ela queria que todos se apaixonassem por ela porque ela é que era a piedosa. Mas ninguém na vila caia muito nessa coisa da Isadora.
Sebastião era cego, não de nascença, mas cego que só via breu. Antes trabalhava noporto, e um dia em um acidente estúpido um tambor com algum produto químico caiu de uma grua sobre um ferro de construção. O Sebastião que fiscalizava ali a operação recebeu um jorro direto nos olhos, e devido à demora do doutor perdera a visão para sempre.
Era aposentado por invalidez. Não era bonito nem feio, mas já tinha uma certa idade quando casou-se com a Isadora que trabalhava na venda onde o Sebastião fazia as compras acompanhado do moleque Neguim, que sempre ganhava umas moedas com isso. Durante a semana seguia um ritual cronometrado. A Isadora lhe fazia café e ia trabalhar. Ele ia na praça da cidade com o Neguim e voltava para almoçar peixe com banana e farofa. De tarde ia sozinho até os rochedos da ponta da praia do Vargas, que se chama assim desde que a ilha é ilha mas não se sabe porquê, mas lá era onde nunca ia ninguém. Dizia que conversava com os golfinhos mas na vila o povo começava a cochichar que o Sebastião estava embirutando. Nos fins de semana ficava ali à porta da sua casa, perto da bananeira, na última rua da vila ouvindo o rádio enquanto a Isadora passava roupa para fora.
Foi uns anos depois do casamento que começou o caso da Isadora com o Benício. O Benício era filho do dono da distribuidora de bebidas e era mais ou menos à toa na vida. Nunca há muito o que fazer na ilha mesmo. Ele era arruaceiro de provocar briga em bar e galantear as solteiras de família na rua. Sempre mexeu com a Isadora no mercadinho que lhe sorria de volta mas sempre o mandava passear. O certo é que ele tanto fez que em um fim de semana à tarde foi ver a Isadora em casa. A Isadora ligou o rádio e aumentou bem o volume enquanto o Sebastião ficava no seu banco na porta azul perto da bananeira.
O Benício ficou conhecido entre seus amigos arruaceiros como o cara que comia a mulher do cego. As visitas que eram de vez em quando tornaram-se semanais. E sempre do mesmo jeito, ela aumentava o volume do rádio elá entrava ele pelos fundos.
Na vila todo mundo sabia mas ninguém falava primeiro por pena do Sebastião, e segundo porque o Benício batia forte. Uma vez chegara a quebrar o maxilar do Bento que dissera que ele era viado. Na vila, Isadora não dava moral para o Benício porque não queria que falassem, mas em uma ilha destas como é possível? Todo mundo já sabia.
Só que um certo sábado cinzento dia a força acabou como acontecia de vez em quando, o rádio desligou e o Sebastião deve ter ouvido por um instante o gemido dela no quarto. Ninguém sabe o que aconteceu. Só se sabe que o Sebastião tinha em casa um Colt 38 que ele afanara do tempo em que trabalhou em uma firma de segurança no continente. O tiro foi tão certeiro que entrou pela boca aberta da Isadora sem estragar-lhe a bela cara. Ninguém acreditava como um cego poderia ter dado um tiro daqueles sem querer ou por querer. O sangue ensopou o colchão e um fio vermelho atravessou a casa e saiu pela porta azul fazendo uma poça embaixo do banco perto da bananeira que desde então esturricou, morreu e nunca mais nasceu dizem.
O Benício vive bebendo agora e nem se lembra de nada, dorme na praça todo vomitado e não fala coisa com coisa.
O Sebastião sumiu. O Neguim ainda disse que viu ele nadando no meio do oceano na praia do Vargas, se afastando da ilha.
O Neguim de vez em quando mente e a gente da ilha não lhe deu muito crédito. Só foram acreditar no dia seguinte quando duas dezenas de golfinhos morreram encalhados na praia do Vargas.

3 comments:

Laura_Diz said...

amanhã leio estou com sono
seu blog é ótimo, talvez porque lembre o meu :)
narcisismo, né?
abs, laura

Anonymous said...

Isso aí, garoto! Legal ver que tá dando vazão ao seu talento natural. Eu sempre me perguntei quanto tempo demoraria.
Parabéns.
Paula

Anonymous said...

I loved, my name is Isadora Benicio...