Sunday, September 10, 2006
Vivendo na Holanda
Acho que aproveitando o sucesso das Páginas da Vida, o jornal Opinião de Araras, terrinha de minha esposa, nos pediu um relato da nossa vida e experiência aqui na Holanda. Aí vai o que eu mandei. Saiu no Opinião deste domingo dia 10/09:
Vivendo na Holanda
Viver na Holanda é uma experiência no mínimo curiosa. O país tem de fato uma paisagem de novela. São casinhas de boneca, pontes e canais, bicicletas, barquinhos, flores, moinhos e vaquinhas pretas-e-brancas. No começo parece que chegamos a um país de brinquedo.
Amsterdam é provavelmente a única cidade que os turistas que vêm naquelas excursões dez-países-em-7-dias conhecem daqui, mas a Holanda de verdade é diferente e só morando aqui para se ver. É só nas cidades mais pequenas e antigas que vemos o holandês como ele é, andando de tamanco em casa, tomando litros de cerveja nos bares, vestido de laranja no Dia da Rainha e nos jogos de futebol do time nacional, indo trabalhar ou para a escola sempre de bicicleta. Sem grandes preocupações ou ambições. Uma casa, um trabalho, uma viagem de férias uma vez por ano. O que eles mais prezam é que (quase) ninguém por aqui quer ostentar um carrão ou uma mansão. Há políticos que fazem questão de irem trabalhar de bicicleta. As casas têm janelas de vidro enormes para que quem passe da rua veja que não há nada demais acontecendo ali dentro, nem muita coisa de valor a invejar. O crime de maior ocorrência é o roubo de bicicletas. É claro que a situação muda nas maiores cidades, onde também há lugares mal recomendados.
O choque seguinte vem com a língua holandesa. Para um brasileiro recém chegado, a quase ausência de vogais nas placas é desesperadora, e o som áspero das frases faladas ainda mais. É inacreditável que eles consigam ter música popular neste idioma, mas depois de alguns anos aprendendo viramos até fãs de alguns cantores e bandas holandesas.
Depois de algumas idas e vindas, acabamos por nos instalar na cidade de Gouda, de onde vem o queijo de mesmo nome, onde vivemos já há quatro anos e meio.
Gouda, é uma antiga cidade da província de Zuid Holland a seis metros abaixo do nível do mar. Da janela do nosso pequeno apartamento de cem anos de idade vemos as pás do velho moinho Rood Leeuw, a pontuda torre da igreja Gouwe Kerk, a simpática torre da antiga capela de Santa Bárbara, a austera torre da igreja de Sint Jan e a ponta do telhado da Stadhuis, a antiga prefeitura. Atrás de casa estão estacionados no porto da cidade antigas barcas de transporte, hoje transformadas em casas.
Mais à frente há uma tradicional fábrica de stroopwafels, os biscoitos típicos daqui. Aliás, biscoitos são o que a Holanda faz de melhor quando se fala de comida. A fábrica faz com que o bairro inteiro cheire a caramelo pela manhã. Pelas rua de pedras da Kuipstraat passamos pelo canal do velho mercado de peixe e chegamos em cinco minutos ao Markt. Esta é a praça, o centro vital de toda antiga cidade holandesa onde tudo era comprado e vendido desde a Idade Média e onde ainda hoje há feira todas as quintas e sábados.
Os holandeses sempre foram uma raça de negociantes. Eles ainda se lembram com orgulho da gloriosa Era de Ouro, no século XVII quando eram a maior potência econômica do planeta com colônias nos quatro cantos do mundo, incluindo o Brasil de Maurício de Nassau. Aliás por causa do comércio é que vim parar por aqui. O porto de Rotterdam é a porta de entrada de grande parte do que entra na Europa hoje, incluindo a carne brasileira que eu vendo por aqui.
A Juliana veio para cá com um diploma de fisioterapia brasileiro. Aí a conversa foi mais difícil. Exigiram o domínio da língua e um estágio para validar o diploma, em um processo que demorou dois anos e meio. Enquanto isso trabalhou com flores, foi babá e até professora de português. Hoje é ela quem fala melhor holandês em casa, e já trabalha contratada por uma clínica e ainda faz especialização em uma faculdade holandesa.
Sempre há o que fazer por aqui. Eu gosto do inverno, de ver os canais congelados, as crianças patinando, a neve e as árvores sem folhas. Gosto do charme dos cafés, dos restaurantes com velas, de ir ao cinema, aos bares e de tomar café com torta de maçã. A Juliana gosta do verão, dos passeios de bicicleta e de barco nos canais, de sair na rua de bermudas e ir à praia. E nós dois gostamos da primavera, com as tulipas por todo lado, e do outono com as folhas das árvores todas amarelas e vermelhas.
Felizmente fizemos amigos suficientes para termos companhias e festa quase todo fim de semana. O problema é que tem que por tudo na agenda por aqui, e é difícil arrumar uma desculpa para não ir àquela festa chata sendo que você está sendo convidado 3 meses antes do evento. Entre nossos amigos por aqui acabamos encontrando muitas mulheres brasileiras casadas com holandeses. Aparentemente as holandesas estavam tão preocupadas em se tornarem iguais em direitos aos homens que para alguns o feminismo passou do ponto...O casamento é perfeito já que a brasileira encontra um homem fiel e que divide as tarefas do lar, e o holandês encontra uma mulher que gosta de agradar e que é “caliente”como poucas holandesas sabem ser.
Apesar de imagem cosmopolita de Amsterdam e da Holanda em geral, a imigração ainda é a pedra no tamanco holandês. Durante o período de grande crescimento econômico do pós guerra chegaram levas e levas de imigrantes principalmente do Marrocos e Turquia e das ex-colônias Indonésia e Suriname. As grandes diferenças culturais principalmente com os muçulmanos são uma fonte de tensão constante na liberal sociedade holandesa. Frequentemente as comunidades de imigrantes isolam-se em bairros dentro das grandes cidades e vivem ali sem integrar-se ao país. Eles se dizem multiculturais, mas a verdade é que a Holanda é um arquipélago de culturas com poucas pontes entre elas. Com medo de serem acusados de racismo ou intolerância, os políticos holandeses preferiam ignorar o assunto, dando ênfase na manutenção de um estado de bem estar social como poucos no mundo. Isso até antes do 11 de setembro de 2001. Aliás foi logo depois que o país entrou em choque com o assassinato de Pim Fortuyn, um político extremista anti-imigração e de Theo van Gogh, um cineasta que criticava a intolerância dos muçulmanos. Fortuyn foi morto por um ecologista fanático por usar casacos de peles e Theo van Gogh, que era um descendente do famoso pintor, foi morto por um marroquino ultra-religioso.
Mas as gerações de imigrantes nascidas na Holanda e os filhos destes certamente são diferentes dos pais, e há esperanças de que consigam conviver em paz e harmonia com os princípios deste país.
Realmente, o vanguardismo da Holanda pode chocar as mentes mais conservadoras. Afinal o casamento gay, e adoção de crianças por gays, o aborto, a prostituição, o uso de drogas leves, a eutanásia, tudo foi legalizado aqui primeiro. Isso pode dar a impressão que esta terra tenha se tornado a Sodoma moderna, mas embora os holandeses apreciem a liberdade que o país lhes proporciona, você verá muito poucos deles rondando o Red Light District de Amsterdam, cujas ruas estão sempre lotadas de turistas em busca de sexo e drogas.
E finalmente, a Holanda é um país que gosta de arte. Grandes pintores e artistas surgiram aqui.
Desde a Idade Média com Bosch, passando pela Era de Ouro Holandesa com Rembrant e Vermeer até o impressionismo de Van Gogh e o modernismo de Mondriaan. Há excelentes museus para se visitar e ainda podemos ver nos bairros mais modernos de Haia, Rotterdam e Amsterdam o louco design dos arquitetos mais famosos no momento.
Enfim, dizem eles que Deus fez o mundo mas os holandeses fizeram a Holanda. Tomaram esta terra em séculos de luta contra o mar, lutaram pela sua indendência contra os espanhóis de Carlos V, depois contra os franceses de Napoleão, depois contra os alemães de Hitler. Navegaram o mundo todo, criaram obras de arte imortais e hoje vivem em um dos países com melhor nível de vida no planeta. É um lugar que vale a pena conhecer, e nem que seja só pela paisagem de cartão postal. Se querem um conselho venham em abril, quando florescem as tulipas, e ainda aproveita-se para tomar uma cerveja comemorando o aniversário da Rainha no dia 29. E venha de alaranjado.
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5 comments:
Quem sabe, ao ler isto, você resolva retomar nossa amizade.
Por seus textos, parece que você é bastante feliz, aí. Beleza.
Abração do
Alberto
é muito bom viajar com suas palavras...Parabéns.
Vc pode ver o país mais chuvoso do planeta; onde o pessoal é mais direto e fala as coisas na sua cara, sem cerimônia; onde o atendimento médico apesar de eficiente, é sofrível ( parece um paradoxo, mas só vivendo aqui pra entender);onde todas as casas são idênticas e se vc fizer qualquer coisa diferente alguém te manda um "doe het gewoon" OU vc pode ver o país que vc pintou no seu artigo.
Eu vejo a Holanda como vc. Eu ando pra frente, tento tirar prazer do lugar onde eu vivo para que minha casa seja a melhor do mundo. Não vivo reclamando, fazendo comparações incabíveis com meu país de origem e canalizo meu foco para as coisas que me dão prazer. Me concentro nas qualidades daqui e por vezes, até me pego me orgulhando delas!
Adorei seu texto. Ele faz a gente se sentir bem e feliz pela nossa escolha de cruzar o oceano pra se estabelecer nestas bandas. Vou copiar e colar em muito email de quem me pergunta como é a vida por aqui.
Paula
Gostei muito do seu texto e do seu blog por isso lhe convido a visitar minha webpage www.biramalta.com
Eu moro em Gouda a 3 anos com o meu parceiro holandês moramos perto do Hospital Groenehartziekenhuis e da estação de trem de Gouda.
meu e-mail é biramalta@hotmail.com
forte abraço
Ubirtan S. Malta
Adorei seu texto, claro, fluente, muito bem escrito.
Cheguei em seu blog pesquisando no Google blogs sobre a Holanda.
Não sou mais jovem, estou a quatro anos para me aposentat do serviço público aqui no Rio de Janeiro, mas como ainda não me sinto totalmente velha e tenho muita curiosidade e vontade de viver por algum tempo em outros países, caí de amores pela Holanda( não havia sido a minha primeira opção, nem a segunda) porque fiz um amigo muito querido holandês, apaixonado pelo Brasil, que já viajou comigo para Salvador e que conversar todos os dias comigo via Internet a às vezes ele telefona também.
Estou, então querendo saber a visão dos brasileiros - adoraria saber a opinião de brasileiras casadas com holandeses - para poder "me situar" melhor e não fazer planos que eu me arrependa depois.
Meu email "denisemiranda1605@gmail.com".
Um abraço afetuoso para você e sua esposa,
Denise Miranda
Rio de Janeiro, Brasil
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