Tuesday, February 19, 2008

Les Bienveillantes


Estou chegando de uma viagem ao inferno. Durante um mês estive mergulhado nas trevas destiladas das páginas de um livro maldito e fascinante. Les Bienveillantes (As Benevolentes) é um romance em francês do escritor nascido em New York Jonathan Littel. Lançado no fim de 2006, virou um fenômeno nas livrarias francesas e ganhou o prémio da Academia Francesa e o Prix Goucourt. Em seu livro, Littel mergulha na Segunda Guerra Mundial vista pelo lado dos carrascos através do seu personagem Maximilian Aue, um oficial da SS nazista. Criada para ser a guarda pessoal de Adolf Hitler em 1925, a SS ou Schutzstaffeln se torna uma seita de fanáticos impregnada da ideologia racista do partido nazista que acaba conquistando como um câncer todas as instâncias de poder na Alemanha do III Reich.
Mais de uma vez tive de segurar a vontade de fechar o livro e jogá-lo no fogo para nunca mais o ver pela frente, tal o horror que a narrativa de Littel provoca. Nada de Novo no Front de Erich Maria Remarque torna-se uma fábula boba comparado à repugnância que Les Bienveillantes provoca.
O livro é dividido como antigas músicas alemãs em Toccata, Allemandes I e II, Courante, Sarabande, Menuet (en Rondeaux), Air e Gigue como uma dança macabra, uma espiral de loucura e morte que arrasta personagem e leitor juntos.
Maximilian Aue é doutor em direito, e Hauptsturmanfurher da SS. Suas neuroses e traumas como o ódio pela mãe, a obsessão sexual incestuosa pela irmã gêmea, a falta do pai, o próprio homossexualismo vão aos poucos aparecendo e crescendo até que finalmente Aue, que no princípio se diz ser um homem calmo e refletido se torna um piscopata assassino, nas suas palavras, apanhado pelas Bienveillantes (As Fúrias da tragédia de Ésquilo).
O livro começa com a limpeza étnica promovida pelas SS na Ucrânia após a ofensiva alemã no leste em 1941. Aue é colocado como observador dos Einsatz gruppen, grupos de extermínio trabalhando atrás das linhas do front. Ele descreve os fuzilamentos dos prisioneiros judeus à beira das fossas comuns, os cadáveres empilhados, os primeiros caminhões preparados como câmaras de gás, os enforcamentos. Em uma passagem particularmente terrível, um SS arrebenta contra um fogão o crânio de um bebê recém nascido salvo do ventre de uma mãe fuzilada em uma aldeia ucraniana. Aue é em seguida enviado ao front em Stalingrado. Entre o frio, a fome, a diarréia, os vômitos e os bombardeios diários, ele descreve o horror total dessa cidade fantasma, onde a morte reina. Ferido mortalmente, o narrador é salvo por milagre e enviado de volta à Alemanha onde é condecorado. Lá ele irá inspecionar os campos de concentração e extermínio com a função de estudar a ração dos prisioneiros usados como trabalho escravo. É preciso que eles não morram antes de terem sido aproveitados como força de trabalho mas que também não representem um rombo nas finanças do Reich. Em Berlim, os bombardeios aliados aumentam a cada dia e a cidade afunda em ruínas e incêndios. A Alemanha recua em todos os fronts e Maximilian Aue se vê cercado por russos e obrigado a bater em retirada pela Pomerania, observando no caminho os últimos judeus dos campos de concentração sendo evacuados, caindo mortos pelo caminho ou sendo fuzilados por não agüentarem o passo. As vilas alemãs são invadidas e destruídas pelos russos que estupram mulheres e crianças no caminho. Maximilian Aue termina chegando em uma Berlim completamente destruída, com um passado a ser apagado e esquecido.
O livro exuda sangue, putrefação e excrementos em todas as suas mais de novecentas páginas.
Agora porquê eu leria um troço desses de livre e espontânea vontade sem ser um sado-masoquista ?
Primeiro porque é um livro extremamente bem escrito e bem documentado, e eu não gosto nem de imaginar o que o autor sofreu em dois anos viajando e revirando arquivos alemães e soviéticos em busca de uma base histórica para o romance.
E em segundo, porque eu me interesso pelas raízes do Mal. Pela mesma razão li a Corte do Czar Vermelho de Simon Seabag Montefiore, apesar de que este é um livro narrado de uma forma sóbria e com uma perspectiva histórica dos fatos, e não com a emoção visceral da narrativa de Littel.
Em Les Bienveillantes, a personagem principal começa dizendo Frères humains, laissez moi raconter…Irmãos humanos ? Sim, a história do holocausto não foi obra de demônios de outro mundo, embora seus feitos sejam demoníacos, mas de homens e mulheres comuns, que em outros tempos seriam advogados, funcionários e padeiros mas que por um passo infeliz acreditaram ou foram coniventes com uma ideologia assassina. O próprio Jonathan Littel diz que uma história parecida poderia ser ambientada na Rússia, no Rwanda, em tantos outros lugares. Mas alguém poderia dizer, ah mas eles eram negros ou chineses. Então ele escreveu sobre o Holocausto, o maior dos crimes, que aconteceu aqui mesmo no coração da parte supostamente mais civilizada do planeta.
Por ocasião do julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hanna Arendt nos fala da banalidade do mal. Para quem esperava um monstro no tribunal, ali estava um velhote com ares de funcionário zeloso, dizendo que só o que ele queria era trabalhar pelo bom desempenho da missão que lhe confiaram, sem se imaginar responsável pela morte de 6 milhões de pessoas.
No livro fica bem claro que a imensa rede burocrática entre as diversas instâncias do Partido e da SS fazia todos serem culpados, mas ao mesmo tempo deixava a impressão de que o indivíduo em si não tinha nada a ver com aquilo já que ele estava apenas obedecendo ordens.
E assim, uma nação inteira delegou seu senso de responsabilidade, às vezes voluntariamente, às vezes contra as próprias convicções, à um bando de dirigentes completamente amorais em busca de um suposto e brilhante futuro comum. Um futuro que o nazismo previa livre de raças inferiores e que o comunismo prevê livre de divisões de classe.
O mal pode ser banal quando esquecemos que a linha última que separa barbárie e civilização está em cada indivíduo. Em um determinado momento, somos nós os últimos responsáveis pelas consequências de nossos atos.

8 comments:

Anonymous said...

Não concordo com esse tipo de leitura.
Penso que ler essas atrocidades não te faz uma pessoa melhor, não auxiliam em nada em seu desenvolvimento pessoal e por isso são inúteis.
O mal existiu, existe e nós sabemos exatamente distinguí-lo.
Talvez existam pessoas que não o percebam e acabem se "unindo" inocentemente ou não a ele. Mas pelo que você escreve sei que você sabe reconhecê-lo muito bem, devido ao seu caráter, educação e extremo bom senso.
Por esse motivo acho esse tipo de livro totalmente desnecessário, acho aliás que só lhe traz tristeza e faz " mal ao seu espírito".
Ju

Alma said...

A história pode ser evidentemente estudada de uma perspectiva distante e sem envolvimento. Não é preciso ler esse livro para entender o Holocausto. Mas há uma diferença entre estudar o que aconteceu e ler esse livro, ler o Diário de Anne Frank ou assistir a Lista de Schindler por exemplo. Ler o que aconteceu em Rwanda ou assitir Hotel Rwanda. Ler o Stalin de Simon Montefiore ou ler os relatos dos sobreviventes dos gulags. Ler sobre o Vitnam ou ver aquela foto famosa de uma criança nua correndo de um bombardeio de napalm. A emoção que passa um relato ou uma imagem, mesmo fictícia porém fiel aos fatos dá uma dimensão humana às estatísticas, um rosto às vítimas, e nos faz de certa forma mais próximos do que aconteceu.

A Fresca said...

Vou me meter aqui nessa história, e o que eu tenho a dizer é que se um indivíduo muda de caráter, fica mal, ou simplesmente muda de personalidade, ou abala seu espírito, gente, então ninguém pode assitir novela com prostituta, nem com ladrão. Existe traficante e existe favela, e o mundo é cruel sim, e existe um monte de gente diabólica, mas existe o contra-peso, sempre. O mal, está nos olhos de quem vê, o certo e o errado são relativos. Isto é discutir o indiscutível. Beijo.

Frodo Balseiro said...

Fernando, não estou entre aqueles que acham que nos devemos dedicar pela vida afora às "Obras Completas de Pollyanna" e seu eterno jogo otimista "do contente".
Livros como o que você competentemente "resenhou", entretanto, atraem leitores pessoalmente interessadas na tematica! Particularmente, não me vejo mergulhado em tais horrores, (e bota horror nisso) ao longo de estenuantes 900 páginas! Essa temática sanguinolenta, insana, para mim já deu o que tinha que dar! O holocausto também. Não tem ano em que não seja lançado um magote consideravel de livros cuja temática, repetitiva, remete ao holocausto. Não que o assunto não deva ser lembrado, como o maior morticínio planejado, e "profissionalmente" executado.
Mas... acho que há um certo exagero na fixação com que o tema é revisitado!
Acho que há um certo prazer mórbido, um suspeito sado/masoquismo subjascente, que faz com que as pessoas nunca passem a régua, enterrem seus mortos, punam severamento os culpados, e "zé fini", ponto final, partamos para outra. Penso da mesma forma com relação à recorrência com que filmes e livros são feitos sobre os horrores da ditadura. Esse olhar fixo para feridas que já deveriam estar fechadas, esse "mastigar" do mesmo terrivel assunto "ad peromnia secula seculorum" não leva ao futuro, não nos faz crescer, remoendo coprólitos!
Isto posto, respeitando claro o seu gosto literário, sugiro, para dar uma arejada, uma releitura desinteressada de "Fernão Capelo Gaivota"(hshshshs), obra totalmente dispensável do ponto de vista literário, mas com inegáveis qualidades desintoxicantes....
Um abraço

clabrazil said...

Lembrei de um filme que talvez te acate... se chama The Last Hangman, com uma atuacao maravilhosa do Timothy Spall, que você deve conhecer mas nao pelo nome.

Se trata da história de um "carrasco", encarregado de dar cabo às pessoas condenadas à pena de morte na Gra-Bretanha. Ele era tao bom nisso que até foi convocado a dar uma maozinha (trocadilho horroroso, desculpa) na Alemanha depois da guerra, matando os nazistas condenados.

Beijinhos e boa mudanca! Continue escrevendo lá dos matos onde vai morar!
Cla

Lelec said...

É Fernando, você acaba de acrescentar mais um título à minha já saturada lista de livros a ler.

Não posso concordar com a "Ju", lá em cima. Ao comunicar sentimentos e emoções a partir de um ponto de vista essencialmente pessoal, o artista estabelece uma ponte com o leitor/apreciador, que se torna muito mais sensível do que se estivesse lendo uma reportagem cheia de dados frios. Por isso, obras assim são absolutamente necessárias.

Abração,

Lelec

Alma said...

Todos mundo que foi pesquisar o nazismo encontrou uma dificuldade imensa de fazer os nazistas falarem. Eles querem mais é esquecer, a maioria dos relatos existentes são sempre das vítimas. Littel nos faz ver como era a cabeça insana dos carrascos, e isso faz o livro fascinante apesar de repugnante. Mas acho que tem que ser lido sim.

Lelec, li em francês mesmo, não sei como está o seu mas a leitura não é difícil.
Abraço

clabrazil said...

Fui procurar o livro mas desisti. Em mini letrinhas, papel fininho, 903 páginas e em francês?

Nao estou pronta pra isso. :-)